05/02/2012 – Histórias cruzadas: patroas x domésticas

05 de fevereiro, 2012

(Guilherme Genestreti, da Folha de S.Paulo) Patroas reclamam das empregadas, que reclamam das patroas; saiba a quantas anda a discussão dessa delicada relação

Empregadas domésticas estão em falta na cidade. Pelo menos, as boas, segundo as patroas. Elas reclamam da pouca fidelidade das trabalhadoras e da oferta cada vez menor das que aceitam dormir no emprego.

Também faltam bons patrões, na visão de quem cozinha e faxina. As queixas vão da jornada de trabalho ilimitada à falta de vontade em conceder direitos trabalhistas. 

O momento não poderia ser mais apropriado para discutir a relação. Estreou na sexta-feira o filme “Histórias Cruzadas”, de Tate Taylor, sobre a convivência entre criadas negras e suas patroas brancas no racista Estado do Mississippi (EUA) dos anos 1960. O longa, inspirado no best-seller “A Resposta”, de Kathryn Stockett (Bertrand Brasil, 574 págs., R$ 44), está indicado em três categorias do Oscar.

A discriminação do serviço doméstico retratada no filme ajudou a fomentar a luta pelos direitos civis nos EUA. Na Grande São Paulo, entre 2003 e 2011, o número de domésticas com escolaridade superior a 11 anos dobrou. Com isso, elas exigem mais seus direitos, diz Eliana Menezes, que preside o sindicato das domésticas do Estado.

“Não existe mais aquele negócio de a empregada ser a tiazinha que cuida do filho até ficar velha e depois não tem onde morrer”, diz. “Hoje elas sabem que devem ser registradas e que não podem ganhar abaixo do piso.”

“Os patrões querem uma empregada que fique dez anos e tudo o que a doméstica quer é largar a profissão em dez dias.” É como a situação é resumida por Ana Paula, dona da empresa Makom, de agenciamento de empregadas. 

“As empregadas hoje não estão restritas a esse mercado. Muitas já foram atendentes de telemarketing, faxineiras de escritório. Não estão nem aí para perder o serviço”, diz ela, que não divulga o sobrenome. 

Na Makom, conta Ana Paula, cerca de 60% não dormem onde trabalham. Segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), uma empregada que mora com os patrões trabalha até 13 horas semanais a mais do que quem não pernoita. De acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o número de empregados da Grande SP que trabalham em mais de uma casa subiu de 13,1% para 23,2%, de 2003 para 2009. 

“A grande transformação é essa: da mensalista para a diarista”, diz a antropóloga Jurema Brites, da Universidade Federal de Santa Maria (RS). 

“Elas não querem trabalhar sem hora extra, morando na casa do patrão, e optam por ser diaristas”, afirma ela, que estuda o tema há 15 anos.

A lei não prevê um limite na jornada de trabalho, tampouco o pagamento de horas extras. “Não tem de ter jornada de trabalho”, defende a advogada Margareth Carbinato, presidente do Sindicato dos Empregadores Domésticos do Estado. “Os patrões saem e quem vai controlar se o empregado cumpriu suas funções, se foi tomar café, assistir à TV?”

A agremiação de patrões, conta Margareth, foi fundada por ela em 1989 “porque os empregados domésticos tinham representatividade, mas não havia quem gritasse pelo empregador”. Entre os serviços oferecidos pelo sindicato estão orientação sobre documentos exigidos para o contrato e apoio jurídico em casos de reclamações trabalhistas. 

A doméstica Márcia Alves, 34, veio há um mês de Pernambuco para trabalhar na capital paulista. Ela, que cursou o ensino médio e tem diploma técnico de segurança do trabalho, conta já ter trabalhado em casas em que tudo era dividido. “Diziam ‘o sorvete é da gente, você não mexe’.”

Hoje, ela mora com a patroa, em Moema (zona sul), mas volta para a própria residência, no Butantã (zona oeste), nos fins de semana. “Para mim, é melhor porque corto as despesas, mas quase ninguém aceita porque perde a liberdade”, diz Márcia, enquanto assiste a uma aula de gastronomia paga por sua empregadora na escola Unire, que oferece cursos diversos para domésticas, na faixa dos R$ 410 por módulo de 24 horas-aula. 

“Os empregadores pedem para ensinarmos como passar camisa, como cuidar da higiene e regras de etiqueta para evitar chamar o patrão pelo nome ou palitar os dentes”, diz Angela Corrêa, que dirige os 20 cursos da escola.

No apartamento da empresária Simara Sukarno, são duas empregadas que vão e voltam no mesmo dia. “Não usam uniforme, só um avental”, diz Simara, moradora de Higienópolis, região central. “Aqui não tem essa de separação. Jantamos na mesma mesa.” Lucineide dos Santos, 33, trabalha para a família de Simara há 17 anos. “Nas festas ela fala para eu tomar um vinhozinho, mas tem casa em que você mal toma refrigerante.”

Até os 14 anos, a psicóloga Sofia Karnakis, 31, foi criada por duas mulheres: a mãe e a empregada Ana Maria Andrade, 56. Há dois anos e meio, quando sua filha nasceu, chegou a sondá-la, mas Ana estava comprometida com outra família. Começou, então, uma cruzada: foram seis tentativas até conseguir alguém “de confiança”. “A minha atual não fica mais de seis horas em casa, trabalha em outros lugares. Mas já passei por tantas que estou achando ótimo”, afirma. 

A cantora Karla Farias, 33, comanda sete empregadas: uma cozinheira, duas faxineiras, três babás (uma para cada filho) e uma lavadeira/passadeira. “Numa entrevista, elas vêm muito preocupadas com quanto vão ganhar, e não com o que vão fazer. Até você acertar, dá muita cabeçada”, diz Karla. 

Vanuza dos Santos, 41, doméstica há 30 anos, reclama das exigências cada vez maiores. “Empregada não tem que passear com o cachorro. A gente entra ali para uma função. Daí o que era só uma ajuda vira obrigação.”

Quartinho e uniforme
O mercado imobiliário observa a redução da demanda por quartos de empregada. “Com as diaristas, o quarto de empregada acaba virando depósito ou escritório”, diz Fabio Rossi Filho, diretor de lançamentos do Secovi-SP (sindicato da habitação) e diretor-presidente da Itaplan Imóveis.

A imobiliária costuma recomendar às incorporadoras a implantação de uma área de serviços no térreo, com banheiros, armários e até refeitório para empregadas, porteiros e jardineiros. É o que está sendo feito no edifício Praça Dankmar, em construção na Vila Andrade (zona sul) pela Projete. Ali, só 5 dos 62 compradores escolheram ter quarto de empregada em seus apartamentos de dois ou três dormitórios. 

Embora o Secovi-SP não tenha estatísticas sobre a redução dos quartinhos na área de serviço, dados da Lopes Inteligência de Mercado mostram que houve grande diminuição no perfil de imóvel onde é mais comum instalar esse tipo de cômodo: aqueles com mais de 90 m². Em 2011, menos de 13% dos 60 mil apartamentos lançados na capital tinham mais de 90 m². Em 2007, esses apartamentos representavam 43% dos 57 mil lançados.

Marcelo Strauss, diretor da AB Uniformes, loja que há mais de 40 anos vende vestuário para domésticas no shopping Iguatemi, zona oeste, também sentiu alteração nos negócios. Há dez anos, os uniformes de domésticas representavam cerca de 60% das vendas. Atualmente, diz, correspondem à metade. “Ter uma empregada doméstica se tornou uma coisa muito elitizada”, diz Strauss.

Nando Olival e Fernando Meirelles foram os diretores de “Domésticas”, filme de 2001 que retrata o cotidiano de empregadas em São Paulo. Olival afirma que já cogitou uma continuação, passada nos dias de hoje. “Mas teria um tom bem diferente”, ressalva. “Antes, o barato era registrar o que tinha de pessoal na vida dessas mulheres. Hoje, como todas elas têm mais vida social, teríamos que retratar outras coisas.” 
(COLABOROU LÍVIA SAMPAIO)

Patroa e empregada discutem o filme

No sábado (28/1), a reportagem levou Simara Sukarno e sua empregada Lucineide dos Santos à pré-estreia de “Histórias Cruzadas”. Frente a frente, as duas contaram suas impressões. Lucineide disse que já teve de usar talheres diferentes dos usados pelos patrões, como no filme. “Saí depois de cinco meses, não dava para mim.” Simara afirmou que não pratica essa distinção, mas já viu ocorrer em outros lugares. “Me lembrei de gente que faz marca até no perfume, mas na minha casa não é assim. Muitas vezes quem faz a comida sou eu.” 

os direitos das domésticas

Lei não prevê limitação da jornada de trabalho

– Registro na carteira de trabalho, especificando data de admissão, salário e condições especiais da atividade

– Salário-mínimo, hoje de R$ 622 

– 13º salário 

– Salário não pode ser reduzido

– Vale-transporte

– Um repouso remunerado por semana, de preferência aos domingos

– Descanso nos feriados civis e religiosos 

– Férias remuneradas de 30 dias

– Estabilidade em caso de gravidez até cinco meses após o parto

– Licença-maternidade com duração de 120 dias e licença-paternidade de cinco dias

– Auxílio-doença bancado pelo INSS

– Aviso prévio de pelo menos 30 dias

– Férias proporcionais depois do fim do contrato de trabalho

– Aposentadoria por invalidez, idade ou tempo de serviço

FGTS é opcional, mas, caso seja concedido, a empregada terá direito também a seguro-desemprego se for dispensada sem justa causa

Fontes: Ministério do Trabalho e Emprego, Ipea e IBGE

o trabalho de empregado na grande são paulo

Em oito anos, dobrou o número de pessoas com alta escolaridade

Número de domésticos

2003: 533 mil
2011: 640 mil
aumento de 20%

2009: 648 mil
2011: 640 mil
diminuição de 1,23%

Carteira assinada

2003: 190 mil dos domésticos tinham carteira assinada 
(eram 35,7% do total)

2011: 260 mil têm carteira assinada (são 40,6% do total)
aumento de 36,5%

Salário médio do empregado doméstico

2003: R$ 507,03
2011: R$ 710,21
aumento de 40%, mas abaixo da inflação*

Escolaridade

2003: 56 mil empregados tinham 11 anos ou mais de estudo 
2011: 133 mil têm 11 anos ou mais de estudo
aumento de 137,3%

Trabalhando em mais de um domicílio

2003: eram 13,1% do total
2009: são 23,2% do total

Discutindo a relação

As queixas de patroas e empregadas

EMPREGADAS

“Tem lugar em que [as patroas] dizem ‘esses copos, esses talheres são só nossos. O sorvete é da gente, você não mexe'”
MÁRCIA ALVES, 34

“Acho injusto não dizer no contrato que tem que cozinhar e, depois, obrigar a assumir a cozinha sem ganhar por isso”
EDIMÁRIA BATISTA, 29

“A empregada que dorme no trabalho acorda às 6h, tira o jantar às 23h e não ganha um tostão extra”
ELIANA MENEZES, presidente do Sindoméstica

“Tem casa em que os patrões são os primeiros a comer. Se eles passarem três horas na mesa, você tem que esperar”
LUCINEIDE DOS SANTOS, 33

“Empregada não tem que passear com o cachorro, mas perguntam até isso na entrevista”

“Absurdo é não ter direito a FGTS. Os patrões aproveitam que é opcional e não pagam”
VANUZA DOS SANTOS, 41

PATROAS

“Antigamente, a relação era mais pura. Os empregados faziam parte da família e tinham um certo carinho. Quando começaram a conceder mais direitos, alguns passaram a pensar que o patrão é o vilão”
MARGARETH CARBINATO, presidente do Sindicato dos Empregadores Domésticos do Estado de SP

“Elas gostam de passar roupa vendo TV, mas, se depois atrasam, culpam o patrão e dizem que têm muito serviço”
FERNANDA CASTUEIRA, 43, instrumentadora cirúrgica

“Elas não desligam do telefone para nada. E, com esses planos ilimitados de ligação, atrapalham o rendimento e deixam a patroa irritada”
ANA PAULA, sócia da Makom, empresa de agenciamento de domésticas

“Numa entrevista, elas vêm muito preocupadas com o quanto vão ganhar, e não com o que vão fazer”
KARLA FARIAS, 33, cantora

“Tenho uma empregada que vem da época em que doméstica cuidava da prataria. Hoje, elas não sabem montar jantar”
SIMARA SUKARNO, empresária

OPINE: Quais queixas têm mais fundamento: de empregadas ou de patroas? Responda para [email protected]

Desempregadas, sim; empregadas, não

NINA HORTA, COLUNISTA DA FOLHA

Ai, que história é essa de secretária, mão direita, funcionária? Por que a empregada doméstica precisa evitar seu nome?

Não existem mais empregadas domésticas? Mentira, existem, sim. E sofremos mais, moramos longe, cuidamos do marido e dos filhos, viajamos quatro horas por dia. Complicou mais ainda desde que resolvemos que é preciso ser garçonete, depiladora e manicure. Que progresso é esse?

Dizem que as empregadas acabaram pois se transformaram na nova classe média, são donas de seus próprios negócios e com isso sustentam seus filhos nas faculdades. Ai, ai, seu Delfim, nem todas. Ainda estamos penando por aqui mesmo, o Brasil não virou Europa nem Estados Unidos.

Seria muito bom que fosse desse jeito. Mas o que somos é mulheres estressadas, arranjando sub-babás crianças para nossas próprias crianças, quase incapazes para o trabalho depois de tanta luta.

Não seria melhor, neste país de hoje, que nos profissionalizássemos no que sabemos fazer agora, que nos interessássemos ainda mais sobre comida, limpeza e tudo o que tem a ver com casa?

Estamos perdendo o bonde, nem existe tanta unha ou pelo para eliminarmos no mundo. Vamos melhorar dentro do que temos jeito para fazer, é uma lei de mercado, há muita gente (todos) precisando de comida boa, de roupa passada, de casa limpa. Por enquanto é aí que está a nossa chance de melhorar de vida.

O jeito é crescer dentro da profissão que de vergonhosa não tem nada. Fazer por merecer belos salários, mudar horários, criar formatos novos, inventar modas eficientes. Empregadas, o mundo está aí, aos nossos pés. Não é preciso mudar de caminho, se não quisermos. É melhorar no nosso mesmo. Eficiência e responsabilidade na vida doméstica. Creiam, uma boa torta de galinha vale mais que um artigo de jornal.

evolução dos direitos

Garantias só foram concedidas a partir dos anos 1970

Antes de 1972
Empregados domésticos não tinham direitos trabalhistas, já que a Consolidação das Leis do Trabalho (1943) não estendeu sua proteção a eles 

1972
A lei 5.859 reconhece direitos como registro na carteira de trabalho, férias de 20 dias e aposentadoria 

1988
Constituição garante 13º, salário mínimo, férias e descanso semanal remunerado

2001
É conferido o direito a FGTS e a seguro-desemprego, mas a critério do empregador 

2006
Direito a férias de 30 dias, estabilidade em caso de gravidez e fim do desconto no salário por fornecimento de alimentação e vestuário

Fonte: Otávio Pinto e Silva, professor de direito do trabalho da USP

Histórias cruzadas (Folha de S.Paulo – 05/02/2012)   

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